26/08/2022

Um breve comentário à oração da Ave Maria: Súplica à Santa Maria, Mãe de Deus

Artigos da série: [1] [2] [3] [4] [5]

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 26/08/2022.

Nos artigos anteriores dessa série sobre a oração da Ave Maria, analisamos a primeira e a segunda parte dessa oração, que são a saudação de São Gabriel Arcanjo (“Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco”, de Lc 1, 28) e a saudação de Santa Isabel (“Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”, de Lc 1, 42). Neste último artigo, vamos tratar da terceira e última parte, a súplica à Santa Maria, Mãe de Deus (“Santa Maria, Mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte. Amém”).

“Santa Maria [...] pecadores”

Iniciamos a súplica invocando Nossa Senhora como “Santa Maria”. A palavra “santo” na Bíblia, tanto em hebraico (“kadosh") quanto em grego (“hagios”), indica alguém “separado”. Quando aplicada a Deus, indica primeiramente que Deus é alguém separado da criação, no sentido de que, como Criador, ele é totalmente distinto das criaturas, transcendente, muito acima de qualquer coisa existente (Is 57, 15). Mas além desse sentido primário, a palavra também é aplicada a Deus para indicar que ele é totalmente separado do pecado (Is 6, 1-7). É nesse segundo sentido, de “separado do pecado”, que a palavra “santo” é aplicada a criaturas, anjos e seres humanos, já que o primeiro sentido, de transcendência, só se aplica a Deus.

Quando a Bíblia diz que alguém é santo, isso não significa, necessariamente, que tal pessoa já está completamente livre de todo vestígio do pecado. São Paulo, por exemplo, chama os cristãos da Igreja de Corinto de “santos” (1Cor 1, 2; 2Cor 1, 1), ainda que houvesse muitos pecados a serem vencidos por eles, como pode ser percebido pela leitura de 1 Coríntios. Eles são santos porque foram batizados e, assim, foram “lavados”, “santificados” e “justificados em nome do Senhor Jesus Cristo e no Espírito de nosso Deus” (1Cor 6, 11). Nesse sentido, portanto, todos os cristãos podem ser chamados de “santos” e são chamados à santidade.

Entretanto, a Igreja aplica o termo “santo” de forma especial àqueles cristãos que, nesta vida, alcançaram a perfeição da caridade. Ser santo é ser separado do pecado, o pecado é a desobediência à lei divina (1Jo 3, 4; Tg 2, 8-13) e o resumo da lei é o amor a Deus de todo coração e ao próximo como a si mesmo (Mt 22, 34-40). Logo, quem alcançou a perfeição desse amor, alcançou a santidade, e merece o título de “santo” de maneira eminente.

Podemos ir além e encontraremos uma santidade ainda mais elevada naqueles que nunca pecaram. Os anjos bons nunca cometerem um pecado sequer e são, com razão, chamados de “santos anjos” (Mc 8, 38; Ap 14, 10). O Senhor Jesus Cristo não contraiu o pecado original e nunca cometeu um pecado pessoal (Jo 8, 46; 2Cor 5, 21; Hb 4, 15; 7, 26; 1Pe 1, 18-19; 2, 22; 1Jo 3, 5), sendo “o Santo de Deus” (Mc 1, 24). E como vimos no segundo artigo desta série, a Virgem Maria, cheia de graça, “foi preservada imune de toda mancha de culpa original no primeiro instante de sua Concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, na atenção aos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano” (Constituição Apostólica “Ineffabilis Deus”).

Desse modo, Nossa Senhora é santa num sentido singular, muito superior a qualquer outro santo. Por isso, na Ave Maria, depois de pedirmos “rogai por nós”, o que pedimos a outros santos também, nós acrescentamos “pecadores”, fazendo um claro contraste entre ela, a Santa Maria, e nós, os pecadores.

“Mãe de Deus”

A súplica continua com uma segunda invocação, onde chamamos Nossa Senhora de “Mãe de Deus”. Já vimos no terceiro artigo que Santa Isabel chama a Virgem Maria de “mãe do meu Senhor” (Lc 1, 43), reconhecendo-a como a Mãe de Deus. A Igreja já invocava Nossa Senhora com esse título desde bem cedo, como pode ser visto na oração “Sob a vossa proteção”, do século III ou IV: “À vossa proteção recorremos, Santa Mãe de Deus; não desprezeis as nossas súplicas em nossas necessidades; mas livrai-nos sempre de todos os perigos, ó Virgem gloriosa e bendita. Amém”.

Entretanto, no século V, um monge de nome Nestório, que foi Patriarca de Constantinopla de 428 a 431, começou a ensinar que a Virgem Maria era apenas “Mãe de Cristo” (“Christotokos”) e não “Mãe de Deus” (“Theotokos”). Por trás desse ensino, estava a crença de que, em Cristo, havia duas pessoas: a segunda pessoa da Trindade, o Filho de Deus, que é Deus, e a pessoa humana de Jesus, o Filho de Maria, que é homem.

O ensino de Nestório chegou aos ouvidos de São Cirilo, Patriarca de Alexandria, que declarou tal ensino como heresia. Segundo São Cirilo, que estava amparado na Escritura e na Tradição, Cristo era uma única pessoa, a segunda pessoa da Santíssima Trindade, que assumiu uma natureza humana no ventre da Virgem Maria, sem deixar de ser Deus. Portanto, como o Filho da Virgem era Deus, ela era a Mãe de Deus.

O Terceiro Concílio Ecumênico, reunido em Éfeso no ano 431, e que é aceito por católicos, ortodoxos e protestantes, reconheceu a ortodoxia do ensino de São Cirilo e condenou o ensino de Nestório como heresia. O Concílio declarou, assim, o dogma de que a Virgem Maria é a Mãe de Deus. Por isso, a Igreja tem invocado Nossa Senhora como Mãe de Deus e assim o fazemos na oração da Ave Maria.

“Rogai por nós”

Após as invocações, fazemos a súplica propriamente dita. Pedimos que Nossa Senhora rogue por nós, ore por nós, interceda por nós, junto a Deus e seu Filho.

Na Bíblia, vemos que podemos e devemos orar uns pelos outros (Ef 6, 18-19; Tg 5, 16; 1Jo 5, 16), o que chamamos de intercessão. Essa comunhão na oração continua mesmo depois da morte. Oramos por aqueles que morreram (2Mc 12, 38-45; 2Tm 1, 16-18), para que alcancem o descanso eterno do céu; e aqueles que estão no céu, anjos e santos, que sabem o que se passa na terra (Hb 12, 1; Ap 6, 9-11), também oram por nós (2Mc 15, 12-16; Ap 5, 8; 8, 3). Por isso, ao nos aproximarmos de Deus em adoração, aproximamo-nos também dos anjos e santos (Hb 12, 22-24), dos quais pedimos a intercessão.

Acima de todos os anjos e santos, todavia, está a Santa Maria, Mãe de Deus. Como aprendemos nos artigos anteriores, na condição de Mãe de Deus, a Virgem Maria supera em muito todas as criaturas. Sua proximidade de Deus não é igualada por ninguém mais. Estando tão próxima de Deus, ela sempre deseja o que Deus deseja. Sua vontade é a mesma do seu Filho. Por essa razão, São Bernardo de Claraval afirma que “Maria é a onipotência suplicante”, no sentido de que tudo o que ela pede, o Filho faz.

Vemos isso nas bodas de Caná (Jo 2, 1-11). Nossa Senhora pede a Nosso Senhor Jesus Cristo em favor dos noivos, porque o vinho tinha acabado (Jo 2, 3). Cristo, depois de esclarecer que ainda não era a hora do banquete messiânico que atualiza sua morte, a Eucaristia (Jo 2, 4; cf. 4, 21. 23; 5, 25. 28; 7, 30; 8, 20; 12, 23. 27; 13, 1; 16, 2. 4. 21. 25. 32; 17, 1), atende ao pedido de sua Mãe e transforma a água em vinho (Jo 2, 5-10), dando início ao seu ministério público (Jo 2, 11). Nossa Senhora, assim, se comporta como as Rainhas Mães do antigo Israel, que intercediam pelo povo diante do rei descendente de Davi (1Rs 2, 13-25), mas as supera por ser a Rainha Mãe por excelência, que é sempre atendida.

Diante disso, podemos pedir a intercessão de Nossa Senhora com confiança, certos de que ela conseguirá para nós, junto ao seu Filho, todas as graças que precisamos para a nossa salvação.

“Agora e na hora de nossa morte”

Ao pedirmos que Nossa Senhora interceda por nós, pedimos que ela o faça em dois momentos específicos, que são os momentos mais importantes da nossa vida: agora e na hora de nossa morte.

“Agora” é o momento presente, o único que existe realmente para nós, pois o passado passou e o futuro ainda não chegou. O presente é o único momento em que podemos fazer alguma coisa, como amar a Deus de todo o coração e ao próximo como a nós mesmos. Como diz o Sl 94 (95), citado em Hb 4, 7, “Hoje, se ouvirdes a sua voz, não endureçais os vossos corações”. E Santa Teresinha do Menino Jesus escreve, em seu famoso poema “Meu Cântico de hoje”:

"Minha vida é só um instante, uma hora passageira.
Minha vida é só um dia que me escapa e me foge.
Tu sabes, oh, meu Deus: para amar-te nesta terra,
Tenho o dia de hoje tão somente!"

Por isso, à semelhança da oração do Pai Nosso, onde pedimos que Deus nos dê o pão nosso de cada dia “hoje”, também pedimos que Nossa Senhora interceda por nós “agora”.

“A hora de nossa morte” é o momento decisivo da nossa vida. Essa é a hora em que se evidencia quem faz parte do número dos eleitos, dos que receberam a graça de perseverarem até o fim (Rm 8, 28-30; Hb 10, 35-39). É possível que um pecador se converta e seja salvo na hora da morte (como o bom ladrão na cruz: Lc 23, 39-43), assim como um justo se desvie e se perca. Como diz o profeta Ezequiel:

“A justiça do justo não poderá salvá-lo no dia em que ele pecar, nem a maldade do ímpio lhe causará tropeço no dia em que se converter de sua maldade. [...] Se eu disser ao justo que com certeza viverá, mas ele, seguro de sua justiça, cometer iniquidade, nenhuma de suas obras justas será lembrada. Morrerá por causa da iniquidade que cometeu. E se eu disser ao ímpio que com certeza morrerá, mas este se converter do pecado e praticar o direito e a justiça, [...] com certeza viverá, não morrerá. Nenhum dos pecados que cometeu será lembrado. Praticou o direito e a justiça, com certeza viverá” (Ez 33, 12-16).

Além disso, depois da morte, não há mais possibilidade de conversão e salvação, pois “está determinado que cada um morra uma só vez, e depois vem o julgamento” (Hb 9, 27), e ninguém pode mudar do lugar de castigo para o de bem-aventurança, e vice-versa (Lc 16, 23-26). O purgatório é um lugar para pessoas salvas se purificarem de pecados veniais e penas temporais (1Cor 3, 12-15), não um lugar para pessoas perdidas se salvarem de pecados mortais e penas eternas.

Desse modo, é importantíssimo pedirmos a intercessão da Virgem Santíssima para a hora da nossa morte, que define o nosso destino eterno, para que gozemos do convívio dos eleitos.

“Amém”

Como é costume nas orações, terminamos a Ave Maria dizendo “amém”. “Amém” é uma palavra hebraica que significa “com certeza”, “verdadeiramente”, “assim seja”, manifestando nossa concordância com o que foi dito na oração (Sl 105[106], 48; 1Cor 14, 16). Assim, encerramos a oração, reconhecendo que a Virgem Maria é, de fato, a cheia de graça, com quem o Senhor está, a bendita e santa Mãe de Deus, preparada por uma imaculada conceição e por uma fé obediente para gerar o Filho de Deus, tornando-se, assim, a verdadeira Jerusalém, o novo templo, a arca da nova aliança, a última Eva, a mulher que fere a cabeça da serpente e a Rainha Mãe, sempre pronta para interceder por nós, pecadores, como “onipotência suplicante”, agora e na hora de nossa morte.

Ao concluirmos esta série, nada mais apropriado do que rezar uma Ave Maria a tão gloriosa Virgem e Mãe. Ou melhor, nada mais adequado do que rezar o Rosário, oferecendo à Nossa Senhora rosas de amor e gratidão com nossas orações.

Leia também os outros artigos da série “Um breve comentário à oração da Ave Maria”:

“Ave Maria… o Senhor é convosco”
“Cheia de graça”
Saudação de Santa Isabel (Parte 1)
Saudação de Santa Isabel (Parte 2)

24/08/2022

O que a Bíblia diz sobre o divórcio?

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 24/08/2022.

O divórcio é uma realidade cada vez mais presente nas famílias da atualidade, inclusive cristãs. Diante desse fato, muitas pessoas se questionam sobre qual a vontade de Deus em relação a isso. Afinal, o que a Bíblia diz sobre o divórcio? Podemos ou não podemos nos divorciar?

Existem duas passagens bíblicas principais que tratam dessa questão, que examinaremos à luz do restante da Escritura: Mt 19, 3-12 e 1Cor 7, 10-16. Ao final, faremos uma síntese do ensino bíblico a partir da doutrina da Igreja.

O divórcio em Mateus 19, 3-12

Em Mt 19, 3-12 (e na passagem paralela de Mc 10, 2-12), Jesus é posto à prova pelos fariseus, que lhe perguntam: “É permitido ao homem repudiar sua mulher por qualquer motivo?” (Mt 19, 3).

Certamente, os fariseus tinham ouvido que Jesus era contra o divórcio (Mt 5, 31-32). Assim, com tal pergunta, eles pretendem colocá-lo contra Moisés, que permitiu o divórcio em Dt 24, 1-4, onde, especialmente no versículo 1, é dito: “Se um homem tomar uma mulher e se casar com ela, e esta não agradar a seus olhos porque encontrou nela algo inconveniente, escreverá um documento de repúdio, o entregará na mão dela e a despedirá de sua casa”.

O “algo inconveniente” mencionado por Moisés em Deuteronômio, que dava direito ao homem de se divorciar da mulher, era motivo de controvérsia entre os judeus. Havia duas escolas de interpretação: a Escola de Shammai entendia que essa coisa inconveniente se referia a pecados sexuais, como o adultério, enquanto a Escola de Hillel a entendia como qualquer coisa desagradável na mulher, como cozinhar mal. Por isso, os fariseus perguntam se o divórcio pode acontecer “por qualquer motivo”.

Jesus responde usando o próprio Moisés, em Gênesis, que narra a instituição do matrimônio por Deus: “Nunca lestes que o Criador, desde o princípio, os fez homem e mulher e disse: ‘Por isso, o homem deixará pai e mãe e se unirá à sua mulher, e os dois se tornarão uma só carne’? De modo que eles já não são dois, mas uma só carne. Portanto, o que Deus uniu, o homem não separe” (Mt 19, 4-6). A partir de Gn 2, 24, citado da Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento), Jesus traz o princípio de que, ao se casarem, homem e mulher se tornam uma só carne, de modo que tal união, efetuada pelo próprio Deus, não pode ser desfeita pelo homem.

Os fariseus, então, perguntam: “Como então Moisés mandou dar documento de divórcio e repudiar a mulher?” (Mt 19, 7). Eles estão pensando na passagem de Dt 24, 1-4, mencionada acima. Jesus responde: “Moisés permitiu repudiar a mulher, por causa da dureza do vosso coração, mas não foi assim desde o princípio” (Mt 19, 8). Ou seja, a vontade de Deus para o divórcio deve ser buscada, não na permissão temporária de Moisés, motivada pela dureza do coração do povo, mas na instituição permanente de Deus, desde o princípio.

Nesse ponto, em Marcos, que foi provavelmente o primeiro Evangelho a ser escrito, Jesus declara a indissolubilidade do matrimônio e a proibição do divórcio em termos absolutos: “Quem repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério contra a primeira. E se uma mulher, tendo repudiado seu marido, se casa com outro, comete adultério” (Mc 10, 11-12). Como o matrimônio é indissolúvel, tanto um homem quanto uma mulher que toma a iniciativa de se divorciar para se casar com outra pessoa, está cometendo adultério, porque o primeiro matrimônio não é dissolvido pelo divórcio.

Entretanto, em Mateus, o autor acrescenta uma cláusula de exceção a essa declaração de Jesus: “Ora, eu vos digo: quem repudia sua mulher – fora o caso de união ilícita – e se casa com outra, comete adultério” (Mt 19, 9). A palavra grega para “união ilícita” é “porneia”, que pode indicar uniões ilícitas como o incesto (1Cor 5, 1), proibido na lei de Moisés (Lv 18, 1-17). O ponto de Jesus é que, se um matrimônio aconteceu dentro dos graus de consanguinidade proibidos na Palavra de Deus, ele é inválido por definição, e a separação é não só uma possibilidade, mas uma necessidade. Fora essa exceção do matrimônio inválido, o divórcio é proibido.

Jesus havia ensinado a mesma coisa em Mt 5, 31-32: “Foi dito também: ‘Quem repudia sua mulher, dê-lhe um documento de divórcio’. Eu, porém, vos digo: todo aquele que repudia sua mulher – fora o caso de união ilícita – torna-a adúltera; e quem se casa com uma repudiada, comete adultério”. Linguagem semelhante é usada em Lucas, sem a cláusula de exceção: “Todo o que repudia sua mulher e se casa com outra, comete adultério; e quem se casa com uma que foi repudiada pelo marido, também comete adultério” (Lc 16, 18). Nessas passagens, acrescenta-se que comete adultério até aquele que se casa com alguém divorciado, mesmo que o divorciado não tenha tomado a iniciativa do divórcio, porque permanece o princípio, mesmo para a parte inocente, de que o matrimônio é indissolúvel.

Desse modo, Jesus não está nem com a Escola de Shammai nem com a Escola de Hillel. Para ele, um matrimônio válido não pode ser dissolvido por nenhum motivo e por nenhum poder humano.

São Paulo ensina a indissolubilidade do matrimônio na mesma linha de Jesus, reconhecendo apenas a morte como fim do matrimônio: “Ora, a mulher casada está ligada por lei ao marido, enquanto ele vive. Se, porém, ele vier a falecer, ela estará livre da lei que a vincula ao marido. Portanto, se enquanto o marido ainda vive, ela se unir a outro homem, será chamada de adúltera. Se o marido, porém, vier a falecer, ela estará livre da lei, e não será adúltera, se unir-se a outro” (Rm 7, 2-3).

Isso parece muito radical hoje e assim também pareceu aos discípulos naquele tempo. Diante da declaração de Jesus em Mt 19, 9, eles dizem: “Se tal é a condição do homem em relação à mulher, é melhor não se casar” (Mt 19, 10). Nessas condições, eles acham o celibato superior ao matrimônio, e de fato o é (1Cor 7, 1. 7. 8. 25-40).

Jesus responde aos discípulos: “Nem todos são capazes de entender essa palavra, mas só aqueles a quem foi dado” (Mt 19, 11). Isso pode se referir ao seu ensino sobre o matrimônio e o divórcio, ou à fala dos discípulos sobre o celibato. De qualquer modo, Jesus continua falando sobre o celibato, usando a palavra “eunuco”, que indica originalmente um homem castrado para cuidar das mulheres do harém real: “Com efeito, há eunucos que nasceram assim do ventre da mãe”, como pessoas que nascem com algum problema de ordem sexual, “e há os que foram feitos eunucos por mão humana”, como os eunucos castrados, “e há os que a si mesmos se fizeram eunucos por causa do Reino dos Céus”, que são os que se tornam celibatários para se dedicarem desimpedidamente ao Senhor. “Quem puder entender, entenda” (Mt 19, 12). Esse ensino é radical, mas está alicerçado no propósito original de Deus para o matrimônio.

Terminamos essa primeira parte observando que toda a discussão entre Jesus e os fariseus diz respeito ao matrimônio contraído entre pessoas pertencentes ao povo de Deus. Mas o que dizer do matrimônio entre pessoas que estão fora da Igreja? É disso que São Paulo trata na próxima passagem que examinaremos.

O divórcio em 1 Coríntios 7, 10-16

Em 1Cor 7, 10-11, São Paulo relembra o ensino de Jesus sobre a indissolubilidade do matrimônio entre pessoas da Igreja: “Aos casados ordeno, não eu, mas o Senhor: a mulher não se separe do marido. Caso se separe, que ela fique sem casar ou, então, que se reconcilie com o marido. E o marido não repudie sua mulher”. O divórcio não pode acontecer e, se uma separação ocorrer por alguma razão, não se pode casar novamente.

Na sequência, São Paulo fala de uma nova situação, não tratada por Jesus: “Aos demais sou eu que digo, não o Senhor: se um irmão tem uma mulher não cristã, mas que concorda em morar com ele, não a repudie; e se uma mulher tem um marido não cristão, mas que concorda em morar com ela, não o repudie. Pois o marido não cristão é santificado por sua mulher cristã, e a mulher não cristã é santificada por seu marido cristão. Caso contrário, vossos filhos seriam impuros; no entanto, agora, são santos” (1Cor 7, 12-14). A situação aqui abordada é aquela em que duas pessoas não batizadas são casadas e, então, apenas uma delas se converte e é batizada. Para os cristãos nesse tipo de casamento, São Paulo também proíbe o divórcio, se a parte não cristã deseja continuar casada. Ele diz, inclusive, que o não cristão se beneficia desse tipo de união, assim como os filhos.

Entretanto, São Paulo prossegue: “Se, porém, a parte não cristã quiser se separar, que se separe. Neste caso, o irmão ou a irmã ficam livres do vínculo: foi para viver em paz que Deus vos chamou. Ademais, ó mulher, como podes saber se salvarás teu marido? Ou tu, marido, como podes saber se salvarás tua mulher?” (1Cor 7, 15-16). Nessa situação específica, em que o matrimônio foi contraído quando as duas partes não eram batizadas, e depois da conversão de uma das partes, o não cristão deseja a separação, tanto o divórcio quanto o novo casamento são possíveis para o cristão.

O ensino bíblico sobre o divórcio de acordo com a Igreja

Diante desses dados da Escritura, o que a Igreja ensina sobre o divórcio?

Primeiro, o matrimônio válido entre batizados é indissolúvel, e tanto o divórcio quanto o novo casamento são proibidos em qualquer circunstância (Mc 10, 11-12; Lc 16, 18; Rm 7, 2-3):

“O matrimônio válido entre batizados diz-se somente rato, se não foi consumado; rato e consumado, se os cônjuges entre si realizaram de modo humano o ato conjugal de si apto para a geração da prole, ao qual por sua natureza, se ordena o matrimônio, e com o qual os cônjuges se tornam uma só carne [...] O matrimônio rato e consumado não pode ser dissolvido por nenhum poder humano nem por nenhuma causa além da morte” (Código de Direito Canônico, cânones 1061 e 1141).

“O vínculo matrimonial é, portanto, estabelecido pelo próprio Deus, de maneira que o matrimônio ratificado e consumado entre batizados não pode jamais ser dissolvido. Este vínculo, resultante do ato humano livre dos esposos e da consumação do matrimônio, é, a partir de então, uma realidade irrevogável e dá origem a uma aliança garantida pela fidelidade de Deus. A Igreja não tem poder para se pronunciar contra esta disposição da sabedoria divina” (Catecismo da Igreja Católica, número 1640).

Segundo, pessoas batizadas num matrimônio válido podem, por uma causa legítima, se separarem, sem que o vínculo do matrimônio seja rompido: “Os cônjuges têm o dever e o direito de manter a convivência conjugal, a não ser que uma causa legítima os escuse” (Código de Direito Canônico, cânone 1151). Nessa situação de separação de corpos, o novo casamento é proibido e a reconciliação é esperada (1Cor 7, 10-11). Causas legítimas para tal tipo de separação são o adultério e a violência doméstica (Código de Direito Canônico, cânones 1152-1155).

Terceiro, o matrimônio válido entre não batizados pode ser dissolvido quando uma das partes se converte e se batiza, e a outra não deseja mais permanecer no matrimônio, o que permite que o crente se case novamente (1Cor 7, 12-16):

“O matrimônio celebrado entre duas partes não batizadas dissolve-se pelo privilégio paulino em favor da fé da parte que recebeu o batismo, pelo mesmo fato de esta parte contrair novo matrimônio, contanto que a parte não batizada se afaste” (Código de Direito Canônico, cânone 1143, parágrafo 1).

Finalmente, pessoas num matrimônio inválido podem e, em alguns casos, como de incesto (Mt 5, 31-32; 19, 9; cf. Código de Direito Canônico, cânones 1091-1094), devem se separar. Como o matrimônio é inválido, as partes envolvidas estão livres para contraírem um matrimônio válido. Além do incesto, são inválidas uniões que se enquadram nas seguintes situações: entre homem menor de dezesseis anos e mulher menor de catorze; entre católico e não católico não casados na Igreja Católica; onde haja impotência permanente e anterior à união; onde não tenha havido consentimento matrimonial; etc. (cf. Código de Direito Canônico, cânones 1083-1090). Em alguns desses casos, como do casamento entre católico e não católico fora da Igreja Católica, é possível seguir o caminho da validação do casamento (cf. Código de Direito Canônico, cânones 1156-1165) ao invés da separação.

Concluindo, podemos certamente dizer com Tertuliano:

“Onde irei buscar forças para descrever, de modo satisfatório, a felicidade do Matrimônio que a Igreja une, que a oblação eucarística confirma e a bênção sela? Os anjos proclamam-no, o Pai celeste ratifica-o [...] Que jugo o de dois cristãos, unidos por uma só esperança, um único desejo, uma única disciplina, um mesmo serviço! Ambos filhos do mesmo Pai, servos do mesmo Senhor; nada os separa, nem no espírito nem na carne; pelo contrário, eles são verdadeiramente dois numa só carne. Ora, onde a carne á só uma, também um só é o espírito” (cf. Catecismo da Igreja Católica, número 1632).

22/08/2022

Um breve comentário à oração da Ave Maria: Saudação de Santa Isabel (Parte 2)

Artigos da série: [1] [2] [3] [4] [5]

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 19/08/2022.

No último artigo sobre a oração da Ave Maria, começamos a analisar a saudação de Santa Isabel (“Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”, de Lc 1, 42), à luz do contexto da Visitação de Nossa Senhora à Santa Isabel (Lc 1, 39-56). Neste artigo, vamos continuar examinando esta saudação, tendo em vista o contexto das passagens do Antigo Testamento que são aludidas na Visitação e nesta saudação.

Há principalmente duas categorias de alusões ao Antigo Testamento na passagem da Visitação e na saudação de Santa Isabel: alusões que identificam a Virgem Maria com a arca da aliança, e alusões que a ligam à mulher que fere a cabeça da serpente.

Nossa Senhora como a arca da aliança

Em primeiro lugar, na passagem da Visitação, há alusões a passagens relacionadas à arca da aliança, em 2 Samuel 6 e Crônicas. A Visitação de Nossa Senhora à Santa Isabel é apresentada com a mesma linguagem (no grego da Septuaginta) da mudança da arca da aliança para Jerusalém feita por Davi. A Virgem Maria, “levantando-se... foi” à região montanhosa de Judá (Lc 1, 39), assim como Davi “levantou-se e foi” para Baala de Judá, também na região montanhosa (2Sm 6, 2). Santa Isabel pergunta: “E de onde a mim isso, que venha a mãe do meu Senhor até mim?” (Lc 1, 43), assim como Davi pergunta: “Como virá até mim a arca do Senhor?” (2Sm 6, 9). São João Batista pulou de alegria no ventre de Santa Isabel diante de Nossa Senhora (Lc 1, 41. 44), assim como Davi ia saltando e dançando diante da arca do Senhor (2Sm 6, 16). Finalmente, a Virgem permaneceu três meses com Santa Isabel (Lc 1, 56), assim como a arca da aliança ficou três meses na casa de Obed-Edom (2Sm 6, 11).

Além desses paralelos, São Lucas escreve que Santa Isabel “exclamou” (verbo “anafoneo”) em alta voz a saudação à Nossa Senhora (Lc 1, 42). Esse verbo, que só ocorre aqui no Novo Testamento, aparece apenas cinco vezes na Septuaginta (1Cr 15, 28; 16, 4. 5. 42; 2Cr 5, 13), sempre para descrever o som melodioso dos cantores e músicos levitas ao louvarem o Senhor diante da arca da aliança. Assim, o que Santa Isabel fez não foi apenas uma simples exclamação, mas um louvor litúrgico diante de Nossa Senhora como nova arca da aliança.

Desse modo, Nossa Senhora é identificada com a arca da aliança. A Mãe de Deus não é simplesmente um novo templo, habitada por Deus e coberta pela presença gloriosa do Altíssimo (Lc 1, 35), como vimos no primeiro artigo. Ela também é o utensílio mais importante do templo que ficava no lugar mais sagrado, no Santo dos Santos, envolvido pela nuvem de glória (Ex 40, 34-35; 1Rs 8, 6-11). Isso fica ainda mais evidente quando lembramos que, dentro da arca da aliança, estavam as duas tábuas de pedra contendo os Dez Mandamentos (a Palavra de Deus: Dt 10, 1-5), o maná (o pão do céu: Êx 16, 33-34) e o cajado de Aarão que floresceu, representando o sacerdócio aarônico (Nm 17, 10-11; cf. Hb 9, 4). Assim também, Nossa Senhora levou dentro de si a Palavra de Deus encarnada (Jo 1, 14), o verdadeiro Pão vivo que desceu do céu (Jo 6, 31-35. 48-58) e o verdadeiro sumo sacerdote segundo a ordem de Melquisedeque (Hb 5, 1-10; 7, 1–10, 25). É por isso que, quando o vidente de Apocalipse viu a arca da aliança no céu (Ap 11, 19), imediatamente descreve que viu no céu uma mulher gloriosa que dá à luz o Messias (Ap 12, 1-2. 5), relacionando, também, a Virgem Maria com a arca.

Nossa Senhora como a mulher que fere a cabeça da serpente

Em segundo lugar, na saudação de Santa Isabel em Lc 1, 42 (“Bendita sois vós entre as mulheres”) há alusões a duas passagens do Antigo Testamento: “Seja bendita acima das mulheres, Jael, a mulher de Héber, o quenita, bendita acima das mulheres das tendas!” (Jz 5, 24); “Tu és bendita, ó filha, pelo Deus altíssimo, mais que todas as mulheres da terra” (Jt 13, 18a; cf. Jt 15, 9-10).

A primeira passagem faz parte do cântico de Débora e Barac, onde eles louvam Jael por ter matado Sísara, inimigo de Israel, com uma estaca na cabeça (Jz 4, 17-21). Na segunda passagem, Ozias, um dos chefes da cidade de Betúlia, louva Judite por ter matado Holofernes, inimigo dos judeus, cortando-lhe a cabeça com sua espada. O que há de comum entre essas duas mulheres é que ambas feriram mortalmente inimigos do povo de Deus na cabeça. Há outras mulheres no Antigo Testamento que fizeram o mesmo: uma mulher que feriu a cabeça de Abimelec, inimigo dos siquemitas, lançando uma pedra de moinho da muralha (Jz 9, 53); e Ester, responsável pela morte de Amã, inimigo dos judeus, por enforcamento (Et 5–7).

Todas essas passagens estão relacionadas com o Protoevangelho de Gn 3, 15. Nessa passagem, Deus diz à serpente (inimiga do povo de Deus): “Porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela. Esta te ferirá a cabeça, e tu lhe ferirás o calcanhar”. Há três inimizades mencionadas: entre a serpente e a mulher, entre a descendência da serpente e a descendência da mulher, e entre a serpente e a descendência da mulher.

Tanto no Texto Hebraico quanto na Septuaginta, não há ambiguidade em relação à palavra “esta” de Gn 3, 15, que se refere gramaticalmente à descendência da mulher. É a descendência da mulher que fere a cabeça da serpente. Apesar disso, como vimos, no Antigo Testamento há muitas ocorrências onde é a mulher quem fere a cabeça da “serpente” (inimigo). E no Novo Testamento, São Paulo aplica essa passagem à Igreja, esposa de Cristo (mulher): “O Deus da paz esmagará, sem demora, Satanás, sob vossos pés” (Rm 16, 20). Portanto, podemos entender que a inimizade entre a serpente e a mulher também envolve o ferimento da cabeça da serpente pela mulher. A mulher participa dessa vitória sobre a serpente juntamente com seu filho. É por isso que São Jerônimo, ao traduzir Gn 3, 15 para o latim, na Vulgata, escreveu que é a mulher quem fere a cabeça da serpente.

Voltando à saudação de Santa Isabel, quando a Virgem Maria é louvada como “bendita entre as mulheres”, ela é reconhecida como o clímax de todas essas mulheres do Antigo Testamento que feriram a cabeça da serpente: Eva (implícito em Gn 3, 15), Jael, a mulher que feriu Abimelec, Judite e Ester. Ao cooperar com a obra de redenção de seu Filho, em sua encarnação (Lc 1, 38), ministério (Jo 2, 1-11) e morte (Lc 2, 35; Jo 19, 25-27), Nossa Senhora contribuiu para que Nosso Senhor Jesus Cristo destruísse o diabo (Hb 2, 14) e suas obras (1 Jo 3, 8), ele que é a antiga serpente (Ap 12, 9). Desse modo, ela realmente feriu a cabeça da serpente juntamente com seu Filho. Por isso, em Ap 12, a Virgem Maria, representando a Igreja, é descrita como a mulher de Gn 3, 15-16, com dores de parto para dar à luz seu filho, em luta contra o diabo (Ap 12. 1-5), apresentado como um dragão (serpente: Ap 12, 9).

Concluindo, por que a Virgem Maria é chamada de bendita? Como vimos no artigo anterior, porque ela guardou a Palavra no coração e se tornou a Mãe de Deus. Como Mãe de Deus, ela é uma verdadeira arca da aliança, carregando a Palavra de Deus, Pão Vivo e Sumo Sacerdote, Jesus Cristo. Como Mãe de Deus, ela é a mulher que dá à luz o filho que fere a cabeça da serpente, participando com ele dessa vitória. Portanto, da próxima vez que você rezar a Ave Maria e chamar Nossa Senhora de “bendita entre as mulheres”, lembre-se de quão gloriosa e poderosa é aquela a quem você se dirige. Reze, assim, com reverência e confiança. Sem dúvida alguma, com a sua intercessão, tal Virgem gloriosa e bendita, Mãe de Deus, pode nos livrar sempre de todos os perigos.

Leia também os outros artigos da série “Um breve comentário à oração da Ave Maria”:

“Ave Maria… o Senhor é convosco”
“Cheia de graça”
Saudação de Santa Isabel (Parte 1)
Súplica à Santa Maria, Mãe de Deus

15/08/2022

A Quaresma de São Miguel Arcanjo

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 15/08/2022.

Neste dia 15 de agosto, a Igreja celebra a Solenidade da Assunção de Nossa Senhora, que no Brasil é transferida para o Domingo seguinte. Além disso, esta data marca o início de uma devoção particular conhecida como “Quaresma de São Miguel Arcanjo”, que se estende até o dia 29 de setembro, festa dos arcanjos São Miguel, São Gabriel e São Rafael. Para te ajudar a observar essa devoção, queremos apresentar quem é São Miguel, as origens da Quaresma em sua honra e orientações práticas sobre como observá-la.

Quem é São Miguel?

Como visto num artigo anterior, São Miguel é um dos três arcanjos apresentados na Bíblia. Como arcanjo, São Miguel é um “príncipe dos anjos”. Seu nome vem do hebraico “Mikael”, composto por três palavras: “mi” (“quem”), “ka” (“como”) e “el” (“Deus”). Daí o significado de seu nome: “Quem é como Deus?”.

São Miguel aparece cinco vezes na Bíblia. As primeiras menções estão na visão de Dn 10–12.

Em Dn 10, o profeta Daniel jejua por vinte e um dias, ao final dos quais um anjo em forma de homem lhe aparece para revelar acontecimentos futuros. O anjo lhe informa que sua oração foi ouvida desde o primeiro dia, quando ele veio a Daniel. Porém, o anjo continua, “O príncipe do reino dos persas resistiu-me durante vinte e um dias, mas Miguel, um dos primeiros príncipes, veio em meu socorro” (Dn 10, 13). O príncipe do reino dos persas não é o rei dos persas. Quando Dn 10–12 fala de um rei humano, usa a palavra “rei” (10, 1. 13; 11, 2. 5-9. 11. 13-15. 25. 27. 36. 40). A palavra “príncipe” aqui normalmente indica anjos, bons ou maus. Assim, o anjo enviado a Daniel sofreu resistência de outro anjo, príncipe dos persas. É, então, que aparece São Miguel. Ele é descrito como “um dos primeiros príncipes” e socorre o anjo que fala com Daniel.

Mais adiante, o anjo diz: “Agora devo voltar, para combater contra o príncipe dos persas. Eu sairei, e logo o príncipe dos gregos virá. Entretanto, eu te anunciarei o que está expresso na escritura da verdade; e ninguém me ajuda senão Miguel, vosso príncipe” (Dn 10, 20-21). Agora, Miguel é apresentado como “vosso príncipe”, isto é, príncipe do povo de Daniel, o povo de Deus, e novamente é aquele que ajuda o anjo no combate contra o príncipe dos persas e contra o príncipe dos gregos.

O anjo prossegue contando a Daniel a história do povo de Deus no período de dominação persa e grega (Dn 11), concentrando-se especialmente em Antíoco Epífanes, grande inimigo do povo de Deus entre 175 e 164 a.C., passando possivelmente pelo primeiro século da era cristã e, talvez, chegando até os finais dos tempos. Depois de descrever a derrota do inimigo escatológico do povo de Deus no final do capítulo 11, o anjo revela a Daniel: “Naquele dia se levantará Miguel, o grande príncipe, que se apresenta em favor dos filhos do teu povo. Será um tempo de angústia, tal como jamais houve, desde que as nações começaram a existir, até aquele tempo. Naquele tempo será salvo o teu povo, todo aquele que for achado inscrito no livro” (Dn 12, 1). Aqui, Miguel é descrito como o “grande príncipe” que assume a causa do povo de Deus no tempo de grande angústia que antecede a ressurreição dos mortos (Dn 12, 2).

Outra referência ao Arcanjo São Miguel aparece em Jd 9. Ao falar de falsos profetas que desprezam a Dominação e insultam os seres gloriosos, São Judas os contrapõe ao exemplo de São Miguel: “No entanto, o arcanjo Miguel, quando estava disputando com o diabo o corpo de Moisés, não ousou lançar contra ele a acusação de blasfêmia, mas apenas lhe disse: ‘O Senhor te repreenda’” (Jd 9).

São Judas alude aqui a uma história presente num livro judaico de nome “Assunção de Moisés” ou “Testamento de Moisés”. Apesar de ter chegado até nós apenas a primeira parte do livro, que não fala da morte de Moisés, sabemos por escritores antigos que a parte ausente narrava a história mencionada por São Judas. Nessa história, Moisés morre nas montanhas de Moabe (Dt 34, 5) e São Miguel vem, como representante do Senhor, para enterrar Moisés. Porém, o diabo reclama o corpo de Moisés para si, alegando que tinha direitos sobre ele, uma vez que Moisés havia pecado quando matou um egípcio injustamente (Êx 2, 11-15). São Miguel não repreende o diabo diretamente, mas apenas lhe diz, citando Zc 3, 2, “O Senhor te repreenda”. Então, o diabo foge e São Miguel enterra o corpo de Moisés com reverência e honra (Dt 34, 6).

Nessa menção a São Miguel, São Judas o chama de “arcanjo” (“príncipe dos anjos”), apresenta-o numa disputa com o diabo e o descreve como alguém que não presume usar sua grande autoridade para condenar o diabo, deixando a condenação com Deus. São Miguel, assim, demonstra o devido respeito por uma autoridade, mesmo que maligna, ao contrário dos falsos profetas contra os quais São Judas escreve.

A última alusão a São Miguel aparece em Ap 12. Depois que a mulher (a Virgem Maria como representante do povo de Deus) dá à luz (referência à cruz e ressurreição: Jo 16, 21-22; 19, 25-27) a um filho varão (o Senhor Jesus Cristo), e esse filho é arrebatado para junto de Deus e do seu trono (a ascensão do Cristo), “Houve então um combate no céu: Miguel e seus anjos combateram contra o dragão, e o dragão combateu junto com os seus anjos. Ele, porém, foi derrotado, e eles perderam seu lugar no céu” (Ap 12, 7-8). Como consequência dessa derrota, o dragão (Satanás: Ap 12, 9) é expulso do céu e lançado à terra. Aqui, São Miguel é descrito como alguém que possui um exército de anjos, assim como Satanás, e que luta contra o diabo e o vence.

Em resumo, São Miguel é um arcanjo ou príncipe dos anjos, razão pela qual é chamado de “um dos primeiros príncipes” e “o grande príncipe” e possui um exército de anjos. Ele também é o príncipe do povo de Deus e seu defensor no tempo da grande angústia final, por isso é o padroeiro da Igreja Católica. Apesar de tamanha autoridade, São Miguel sabe respeitar outras autoridades, inclusive o diabo. Mas tal respeito não o impede de ajudar outros anjos na sua luta contra anjos malignos, e ele mesmo luta contra o diabo e o vence.

Quando começou a Quaresma de São Miguel?

Uma Quaresma é um período de quarenta dias em que se faz penitência. Na Bíblia, o número quarenta é significativo. O Dilúvio, que foi um juízo contra o pecado, durou quarenta dias (Gn 7, 17). Moisés ficou quarenta dias sem comer e sem beber, quando recebeu a Lei (Ex 34, 28). Israel caminhou quarenta anos no deserto em penitência pelos seus pecados (Nm 14, 34). Elias caminhou quarenta dias sem comer até o Monte Horeb (1Rs 19, 8). Os ninivitas fizeram penitência por quarenta dias, para que Deus não destruísse sua cidade (Jn 3, 4-10). O Senhor Jesus jejuou por quarenta dias no deserto (Mt 4, 1-2). E outros exemplos poderiam ser mencionados.

A Quaresma, como preparação para a Páscoa, foi estabelecida como obrigatória no Concílio de Niceia (325), inspirada em práticas de preparação para a Páscoa que remontam ao século II e nos exemplos bíblicos acima mencionados. Durava quarenta dias, sem contar os domingos, da Quarta-feira de Cinzas até o Sábado imediatamente anterior à Páscoa.

Quanto à devoção a São Miguel, ela também é bastante antiga, estando bastante associada com uma das mais famosas aparições do Arcanjo, no monte Gargano, na Itália. No final do século V, por volta do ano 490, um pastor tentou retirar um novilho de uma caverna lançando uma flecha. A flecha, porém, foi como que agarrada no ar por uma mão invisível e voltou-se contra o próprio pastor, ferindo-o. O fato foi narrado ao bispo local, que ordenou um jejum de três dias, para que Deus revelasse o significado desse sinal. Então, o Arcanjo São Miguel apareceu ao bispo, declarou-lhe ser responsável pelo sinal e declarou que uma Igreja deveria ser edificada na caverna em sua honra. Desde então, passou-se a celebrar nesse lugar a Missa e outros ofícios litúrgicos.

A Quaresma de São Miguel, entretanto, é de origem mais recente, com São Francisco de Assis, no século XIII. Quando São Francisco se converteu, em 1206, passou a fazer parte da Ordem dos Penitentes, que faziam penitências públicas. Ele, então, começou a observar, gradativamente, quatro quaresmas por ano, com jejum, solidão e oração, no Monte Alverne: além da Quaresma em preparação para a Páscoa, uma Quaresma em preparação para o Natal, começando depois da Festa de Todos os Santos, em 1º de novembro; uma Quaresma depois da Festa da Epifania, em 6 de janeiro, que comemorava também o Batismo do Senhor Jesus; e uma Quaresma da Festa de São Pedro e São Paulo, em 29 de junho, até a Festa da Assunção de Nossa Senhora, em 15 de agosto.

Acredita-se que a devoção de São Francisco a São Miguel Arcanjo tenha surgido exatamente a partir do Santuário de Gargano, onde São Miguel havia aparecido. São Francisco visitou o local em 1216, mas não entrou, por não se achar digno. Apenas rezou na entrada da Igreja, beijou o chão e traçou o sinal da cruz em forma de Tau (“T”) em uma pedra.

Sobre essa devoção de São Francisco, São Boaventura escreve: “Um vínculo de amor indissolúvel unia-o aos anjos cujo maravilhoso ardor o punha em êxtase diante de Deus e inflamava as almas dos eleitos”; “Ao bem-aventurado Arcanjo Miguel – visto que é seu o ministério de trazer as almas diante de Deus – [São Francisco] nutriu um amor e devoção especiais”. Tomás de Celano também relata: “Dizia muitas vezes que São Miguel devia ser mais excelentemente honrado, pelo fato que este tinha o ofício de apresentar as almas a Deus. Dizia, pois, que ‘Em honra de tão grande príncipe, todos deveriam oferecer algum louvor ou dádiva a Deus’”.

Foi no ano de 1224 que São Francisco celebrou a Quaresma de São Miguel pela primeira vez, no Monte Alverne, de 15 de agosto, Festa da Assunção de Nossa Senhora, até 29 de setembro, Festa dos Três Arcanjos, acrescentando-a às quatro quaresmas já observadas por ele anualmente. Ele diz: “Para honra de Deus, da bem-aventurada Virgem Maria e de São Miguel, Príncipe dos Anjos e das almas, quero fazer aqui [no Monte Alverne] uma quaresma”. E foi exatamente durante essa primeira Quaresma que ele recebeu os santos estigmas de Cristo, no dia 17 de setembro, três dias após a Festa da Exaltação da Santa Cruz, após uma visão do Cristo Crucificado que lhe apareceu como um Serafim com seis asas.

Os franciscanos difundiram a Quaresma de São Miguel durante o século XVIII. Depois disso, ela recebeu pouca atenção. Porém, recentemente ela tem se popularizado bastante, especialmente através da Internet.

Como viver a Quaresma de São Miguel?

A Quaresma de São Miguel, como foi dito, se estende do dia 15 de agosto a 29 de setembro, excluídos os domingos, e consiste num tempo de penitência e oração. Dentro desse período se inclui a Novena em Honra a São Miguel, entre os dias 20 e 29 de setembro.

Como essa Quaresma é uma devoção particular, não é obrigatória como os tempos penitenciais da Quaresma em preparação para a Páscoa e do Advento em preparação para o Natal. Apesar disso, é uma devoção altamente recomendável, porque proporciona um tempo penitencial intermediário entre o longo período que se estende da Quaresma ao Advento.

O fato de ser uma devoção particular também implica que não há uma regra absoluta sobre como viver esse período. O que segue, portanto, são apenas sugestões, mas que têm sido recomendadas e seguidas por muitos católicos.

Providencie um altar para São Miguel com uma imagem ou estampa, e então, todos os dias:

  • Acenda uma vela abençoada por um sacerdote diante da imagem de São Miguel.
  • Ofereça uma penitência. A penitência pode estar ligada à esmola, jejum e oração. Pela esmola, desprendemo-nos das coisas; pelo jejum, dos prazeres; e pela oração, de nós mesmos. Alguns exemplos de penitência serão sugeridos ao final deste artigo.
  • Faça as orações recomendadas: o sinal da cruz, o Pequeno Exorcismo do Papa Leão XIII (Oração de São Miguel Arcanjo), a Ladainha de São Miguel Arcanjo, a Consagração a São Miguel Arcanjo e o pedido de uma graça a ser alcançada. Use o aplicativo Pocket Terço para rezar essas orações.

Além dessas práticas, é importante fazer uma boa confissão durante o período dessa Quaresma, participar da Missa em honra a São Miguel (se possível, diariamente) e rezar a Oração de São Miguel Arcanjo após a comunhão.

Alguns exemplos de penitência para esse período são os seguintes (escolha algumas delas):

Esmola:

  • Gastar dinheiro apenas com o necessário;
  • Guardar trocos para doação;
  • Dar esmolas, refeições, cestas básicas etc.;
  • Desfazer-se de bens para doá-los;
  • Fazer algum trabalho voluntário ou ajudar um projeto social;
  • Ajudar alguém de forma anônima;
  • Ajudar pessoas desconhecidas;
  • Fazer uma gentileza para alguém todos os dias;
  • Ouvir as pessoas com mais atenção;
  • Evangelizar alguém;
  • Convidar alguém para ir à Missa.

Jejum:

  • De alimentos:
    • Fazer jejum todas as sextas-feiras;
    • Fazer jejum de comida e água por um dia inteiro;
    • Retirar alguma refeição: café da manhã, almoço ou jantar;
    • Retirar refeições intermediárias;
    • Fazer abstinência de algum alimento: carne, álcool, café, refrigerante, doces, fast-food ou algo de que se goste;
    • Retirar algo dos alimentos: açúcar, sal, condimentos;
    • Diminuir alimentos: arroz, feijão, pão, macarrão;
    • Acrescentar algum condimento desagradável aos alimentos;
    • Comer algum alimento desagradável;
    • Beber apenas água, sem outros líquidos;
    • Beber água numa temperatura desagradável.
  • De outras coisas:
    • Abster-se total ou parcialmente de assistir TV, ouvir música, usar Internet, mexer no celular (desligar notificações), acessar redes sociais, assistir Netflix, jogar algum jogo, fumar;
    • Fazer coisas desagradáveis: fazer tarefas desagradáveis em casa e no trabalho sem murmurar, dormir sem travesseiro, dormir uma hora a menos, orar de joelhos, sentar-se em cadeiras duras, não encostar as costas na cadeira, cuidar da postura corporal, não usar carro próprio, elevadores ou escadas rolantes, locomover-se a pé.
  • Nos relacionamentos:
    • Não mexer no seu telefone quando estiver com outras pessoas;
    • Não se defender ao ser acusado;
    • Não reclamar ou murmurar;
    • Não gritar ou levantar a voz para as pessoas;
    • Não tentar justificar os erros;
    • Falar bem das pessoas que se gostaria de criticar;
    • Ser gentil mesmo com quem não é;
    • Ouvir as pessoas incômodas sem as interromper;
    • Sorrir sempre e para todos;
    • Pedir perdão a quem se ofendeu;
    • Dedicar mais tempo para a família.

Oração:

  • Fazer um bom exame de consciência todas as noites;
  • Acordar mais cedo para fazer oração e leitura bíblica;
  • Participar da Santa Missa diariamente;
  • Adorar Jesus no Santíssimo Sacramento diariamente;
  • Confessar-se semanalmente;
  • Rezar a Liturgia das Horas, o Rosário e/ou a Leitura Orante diariamente (Lectio Divina);
  • Fazer outras orações, como o Terço de São Miguel, ladainhas e orações diversas, salmos, textos bíblicos etc.
  • Ler um livro espiritual diariamente;
  • Rezar por uma pessoa diferente a cada dia da Quaresma;
  • Rezar mais pelos outros do que por si mesmo;
  • Agradecer mais, inclusive pelas adversidades.

Desejamos que você viva uma excelente Quaresma de São Miguel Arcanjo, de modo que, como é dito no Pequeno Exorcismo do Papa Leão XIII, ele lhe defenda no combate e seja o seu refúgio contra as maldades e ciladas do demônio! Amém.

Leia também: Os Três Arcanjos da Bíblia.

12/08/2022

Um breve comentário à oração da Ave Maria: Saudação de Santa Isabel (Parte 1)

Artigos da série: [1] [2] [3] [4] [5]

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 12/08/2022.
Nos últimos dois artigos sobre a oração da Ave Maria, analisamos a primeira parte da oração, que consiste na saudação do Arcanjo Gabriel à Nossa Senhora (“Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é convosco”, de Lc 1, 28). Neste artigo e no próximo, examinaremos a segunda parte, a saudação de Santa Isabel (“Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”, de Lc 1, 42).

“Bendita sois vós entre as mulheres e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus”

Na saudação de Santa Isabel, Nossa Senhora e Nosso Senhor são chamados, respectivamente, de “bendita” (“eulogemene”) e “bendito” (“eulogemenos”). O verbo por trás dessa palavra no grego é “eulogeo”, composto por duas palavras: “eu” (“bom” ou “bem”) e “logeo” (“falo”, da mesma raiz de “logos”, “palavra”). O significado primário desse verbo, portanto, é “falar bem”, “louvar”, “exaltar”. Inclusive, um adjetivo da mesma raiz (“eulogetos”) é usado por São Paulo em Ef 1, 3 para louvar a Deus. Assim, a tradução “bendito” captura bem esse sentido básico. Mas, além disso, o verbo “eulogeo” tem o sentido derivado de “abençoar”, como em Gn 1, 28 na Septuaginta (tradução grega do Antigo Testamento), e esse certamente é o sentido mais proeminente nesta saudação. A Virgem Maria e seu Filho são abençoados.

Outro dado importante é que o verbo grego “bendito” em Lc 1, 42 é um particípio perfeito na voz passiva. Isso significa que Maria Santíssima e o Menino Jesus são alvos da bênção de Deus (voz passiva), receberam essa bênção antes do encontro com Santa Isabel (na Anunciação do Arcanjo e na própria concepção da Virgem Maria no ventre de sua mãe, como visto no artigo anterior; cf. Lc 1, 28) e, como consequência, continuam abençoados (tempo perfeito).

Para compreendermos tudo o que esta saudação nos ensina sobre a Virgem Maria, precisamos analisá-la a partir de dois contextos: o contexto da Visitação de Nossa Senhora à Santa Isabel (Lc 1, 39-56), onde esta saudação ocorre, e o contexto das passagens do Antigo Testamento que são aludidas na Visitação e nesta saudação. Neste artigo, vamos nos concentrar no contexto da visitação.

Visitação de Nossa Senhora à Santa Isabel

Na anunciação do Arcanjo Gabriel à Nossa Senhora, além de lhe falar sobre o nascimento do Senhor Jesus Cristo, ele também lhe informou sobre a gravidez de Santa Isabel, sua parenta (prima, segundo a tradição), na velhice (Lc 1, 36). Isso motivou a Virgem Maria a visitar sua prima na região montanhosa de Judá (Lc 1, 39). Quando Nossa Senhora saudou Santa Isabel (Lc 1,40), São João Batista saltou de alegria no ventre de sua mãe e Santa Isabel ficou cheia do Espírito Santo (Lc 1, 41). De fato, o Arcanjo São Gabriel havia dito a São Zacarias, pai de São João Batista, que ele seria cheio do Espírito Santo desde o ventre de sua mãe (Lc 1, 15).

Por causa desse acontecimento, Santa Isabel saúda a Virgem Maria com a saudação que estamos examinando, chamando-a de “bendita” e seu filho de “bendito” (Lc 1, 42). Ao dizer “bendito é o fruto do teu ventre”, Santa Isabel está fazendo referência a Dt 28, 1-2, 4: “Se ouvires atentamente a voz do SENHOR, teu Deus, guardando e praticando todos os seus mandamentos que eu hoje te ordeno, […] todas estas bênçãos virão sobre ti e te seguirão, por dares ouvido à voz do SENHOR, teu Deus. […] Bendito será o fruto do teu ventre”. Em outras palavras, a Virgem Santíssima mereceu trazer o Cristo bendito em seu ventre por causa de sua obediência à Palavra de Deus (Lc 1, 38), resultado da graça divina que a alcançou em sua Imaculada Conceição (Lc 1, 28).

Santa Isabel diz mais: “Como me acontece que a mãe do meu Senhor venha a mim?” (Lc 1, 43). Ou seja, o Filho de Maria Santíssima não é apenas o Cristo, mas também o Senhor de Santa Isabel. Se ele é o Senhor, e o Senhor é Deus (Lc 1, 28. 32. 38. 46. 58. 68), segue-se que o Filho da Virgem Maria é Deus e ela é a Mãe de Deus.

Santa Isabel continua: “Bem-aventurada aquela que acreditou, porque se cumprirá o que lhe foi dito da parte do Senhor” (Lc 1, 45). A palavra “bem-aventurada” (“makaria”) é a mesma palavra usada no Sl 1, 1 na Septuaginta, para descrever o homem que tem o seu prazer na lei do Senhor e que nela medita dia e noite (Sl 1, 2). Pode ser traduzida como “abençoada”, mas, pensando no significado da palavra hebraica equivalente (“ashre”), a melhor tradução é “verdadeiramente feliz”. Nossa Senhora é verdadeiramente feliz porque acreditou, e não, pura e simplesmente, por causa de uma relação biológica com o Cristo. Ela é a bem-aventurada porque guardou a Palavra no coração, antes de guardá-la em seu ventre. É por isso que, quando uma mulher disse ao Senhor Jesus: “Bem-aventurado o ventre que te gerou e os seios que te amamentaram” (Lc 11, 27), ele a corrigiu imediatamente: “Bem-aventurados, antes, os que ouvem a Palavra de Deus e a guardam” (Lc 11, 28), que foi exatamente o que sua Mãe fez (cf. Lc 2, 19. 51).

Em reposta à saudação de Santa Isabel, Nossa Senhora louva a Deus com o chamado “Magnificat”, o “Cântico de Maria” (Lc 1, 46-55). Nessa oração, a Virgem Maria diz, entre outras coisas, que “Todas as gerações, desde agora, me chamarão bem-aventurada, porque o Poderoso fez por mim grandes coisas” (Lc 1, 48-49). Assim, Maria Santíssima prevê que o louvor que lhe foi dirigido por Santa Isabel seria repetido por todas as gerações desde então. Toda vez que rezamos uma Ave Maria, estamos nos unindo a essa multidão que exalta Nossa Senhora como a “bendita”.

Ao concluirmos este exame da saudação de Santa Isabel à luz do contexto da Visitação, podemos dizer que, ao saudarmos a Virgem Maria como “bendita entre as mulheres”, estamos louvando-a como a abençoada e verdadeiramente feliz, porque guardou a Palavra em seu coração, merecendo, assim, trazê-la em seu ventre e se tornar a Mãe de Deus. Porém, mais do que palavras em nossos lábios, essas verdades devem se tornar realidades em nossas vidas. Nós devemos imitar a fé e obediência de Nossa Senhora, devemos guardar a Palavra de Deus em nossos corações, para não pecarmos contra Deus (Sl 119, 11) e para produzirmos fruto (Mt 13, 23):

“A Igreja que contempla a sua santidade misteriosa e imita a sua caridade [da Virgem Maria], cumprindo fielmente a vontade do Pai, torna-se também, ela própria, mãe, pela fiel recepção da palavra de Deus: efetivamente, pela pregação e pelo Baptismo, gera, para vida nova e imortal, os filhos concebidos por ação do Espírito Santo e nascidos de Deus” (Lumen Gentium 64).

Leia também os outros artigos da série “Um breve comentário à oração da Ave Maria”:

“Ave Maria… o Senhor é convosco”
“Cheia de graça”
Saudação de Santa Isabel (Parte 2)
Súplica à Santa Maria, Mãe de Deus

10/08/2022

Os três arcanjos da Bíblia

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 10/08/2022.

A Bíblia apresenta, além do ser humano, outra espécie de seres, criados por Deus, em, com e para Cristo (Cl 1, 15-16), que também possuem inteligência e vontade: os anjos (Sl 90[91], 11). O termo “anjo” (do grego “angelos”) significa “mensageiro” e indica o ofício dessas criaturas. Quanto à sua natureza, os anjos são espíritos (Hb 1, 14), que não possuem corpo (Lc 24, 39).

O número dos anjos é enorme: milhares de milhares, miríades de miríades (Dn 7, 10; Ap 5, 11; Sl 67[68], 18[17]; Mt 26, 53). Além disso, na Escritura encontramos vários tipos de anjos: serafins (Is 6, 2. 6), querubins (Gn 3, 24; Ez 10, 1-22), tronos (Cl 1, 16), dominações (Cl 1, 16), poderes (1Pe 3, 22), potestades (Cl 1, 16; 1Pe 3, 22), principados (Cl 1, 16), arcanjos (1Ts 4, 16) e anjos. Neste artigo, queremos nos concentrar especialmente nos arcanjos.

Os arcanjos em geral

A palavra “arcanjo” é formada pela palavra “anjo”, antecedida pela palavra grega “arche”, que significa “principado”. Logo, um arcanjo é um “príncipe dos anjos”. Essa palavra só ocorre duas vezes na Bíblia: em 1Ts 4, 16, onde São Paulo fala da “voz do arcanjo” que será ouvida por ocasião da segunda vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo, e em Jd 9, onde a palavra é aplicada ao Arcanjo São Miguel.

Na literatura judaica, havia sete arcanjos: Miguel, Gabriel, Rafael, Uriel, Raguel, Sariel e Remiel (1 En. 20, 1–8; 40; 54, 6; 71, 8–9; 81, 5; 90, 21–22; Test. Levi 3, 5; Pirke de Rabbi Eliezer 4; os nomes dos quatro últimos arcanjos sofrem alterações dependendo do escrito). A Bíblia faz referência a esses sete anjos, sem mencionar os nomes, em Tb 12, 15, onde São Rafael se identifica como um dos sete anjos que assistem diante de Deus e entram na sua presença, e em Ap 8, 2, onde aparecem sete anjos que estão diante de Deus. Porém, a Bíblia só menciona os nomes dos arcanjos São Miguel, São Gabriel e São Rafael, que são os únicos nomes angélicos reconhecidos pela Igreja Católica. Vamos examinar brevemente o que a Escritura diz sobre cada um deles.

São Miguel

O nome “Miguel” vem do hebraico “Mikael”, que significa “Quem é como Deus?”. São Miguel aparece tanto no Antigo quanto no Novo Testamento. Em Dn 10, 13. 21, São Miguel é chamado de “vosso príncipe” (de Israel) e auxilia outro anjo na luta contra o príncipe da Pérsia e o príncipe da Grécia, também anjos, porém caídos. Em Dn 12, 1, ele é chamado de “o grande príncipe” e é descrito como se levantando para defender os filhos de Israel num tempo de grande angústia, que antecede a ressurreição dos mortos. Em Jd 9, ele disputa com o diabo o corpo de Moisés e lhe diz: “O Senhor te repreenda!”. E em Ap 12, 7, após a ascensão do Senhor Jesus, São Miguel e os seus anjos combatem contra o diabo e os seus anjos e o vencem. Desse modo, a Bíblia apresenta o Arcanjo São Miguel como aquele que luta contra os inimigos de Deus em favor do povo de Deus.

São Gabriel

O nome hebraico “Gabriel” significa “homem de Deus”. Assim como São Miguel, o Arcanjo São Gabriel aparece nos dois Testamentos. Em Dn 8, 16, São Gabriel é quem dá à Daniel a interpretação da visão sobre o carneiro e o bode. Em Dn 9, 21, São Gabriel é enviado para revelar a Daniel a profecia das setenta semanas. Em Lc 1, 19, São Gabriel aparece a São Zacarias, diz que assiste diante de Deus e lhe anuncia o nascimento de São João Batista. E em Lc 1, 26, São Gabriel é enviado à Virgem Maria, para lhe anunciar o nascimento do Senhor Jesus Cristo. Vemos, assim, que São Gabriel é responsável especialmente por trazer importantes mensagens de Deus aos homens.

São Rafael

“Rafael” também é um nome hebraico e significa “Deus cura”. São Rafael só aparece no livro bíblico de Tobias. Nesse livro, ele se manifesta como um homem de nome “Azarias” e acompanha Tobias em sua viagem para recuperar o dinheiro do seu pai Tobit. São Rafael é o grande responsável pela cura de Sara, atormentada por um demônio que matou seus sete maridos, e que se torna esposa de Tobias, e pela cura de Tobit, que tinha ficado cego. Por essa razão, São Rafael é conhecido como o anjo da cura.

A festa dos três arcanjos

A Igreja celebra a festa dos arcanjos São Miguel, São Gabriel e São Rafael no dia 29 de setembro. E com São Francisco de Assis, começou-se uma devoção conhecida como “Quaresma de São Miguel”, em preparação para a festa dos três arcanjos, que inicia no dia 15 de agosto, Solenidade da Assunção de Nossa Senhora. Para te ajudar a observar a Quaresma de São Miguel e se preparar para a festa desses arcanjos, vamos publicar no dia 15 de agosto um artigo explicando mais sobre essa devoção. Não perca!

06/08/2022

Um breve comentário à oração da Ave Maria: "Cheia de graça"

Artigos da série: [1] [2] [3] [4] [5]

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 05/08/2022.
Examinamos em um artigo anterior a saudação do Arcanjo Gabriel à Virgem Maria (“Ave Maria […] o Senhor é convosco” – Lc 1, 28), deixando para um artigo futuro a expressão “cheia de graça”. Neste artigo, analisaremos justamente essa expressão.

“Cheia de graça”

No grego, há um jogo de palavras entre a saudação “ave” ou “alegra-te” (“chaire”, do verbo “chairo”) e a expressão “cheia de graça” (“kecharitomene”, do verbo “charitoo”). Através de um exame da expressão “cheia de graça”, podemos aprender muitas coisas importantes sobre a Virgem Santíssima.

Em primeiro lugar, o verbo grego por trás de “cheia de graça” (“charitoo”: “agracio”) significa conceder graça, demonstrar favor. O verbo está na voz passiva, indicando que Nossa Senhora foi alvo do favor de Deus, que ela recebeu a graça de Deus. O Arcanjo explica isso em Lc 1, 30: “Encontraste graça [“charin”] junto a Deus”. Esse fato nos ensina que a Virgem Maria deve tudo o que é ao próprio Deus. Ela é, como diz de si mesma, a “serva [“escrava”] do Senhor” (Lc 1, 38), de “condição humilde”, para a qual o Senhor olhou (Lc 1, 48. 52).

Segundo, esse verbo grego está no particípio e funciona como um adjetivo substantivado, sendo usado pelo Arcanjo Gabriel como um título para Nossa Senhora. É importante observar que, no texto bíblico, o nome “Maria” não aparece na saudação. O verbo traduzido como “cheia de graça” toma o lugar do seu nome. Isso é muito significativo. A identidade de Maria Santíssima é de tal forma definida pela graça recebida de Deus que “cheia de graça” se torna seu título. A singularidade desse fenômeno fica ainda mais evidente pelo fato de que esse é o único lugar em toda a Bíblia em que um anjo se dirige a alguém por um título ao invés de um nome, e é o único lugar da Bíblia em que a expressão “cheia de graça” (“kecharitomene”) aparece. A saudação do Arcanjo foi tão incomum que Nossa Senhora “perturbou-se com essas palavras e pôs-se a pensar no que significaria a saudação” (Lc 1, 29). Desse modo, podemos dizer que ser “agraciada” é a grande característica de Nossa Senhora, e que ela a possui de uma maneira exclusiva.

Por causa desse fato, São Jerônimo escolheu a expressão “cheia de graça” (“gratia plena”) na Vulgata para traduzir o verbo grego “kecharitomene” em Lc 1, 28. Mais do que isso, com base nessa expressão, Padres e Doutores da Igreja descrevem a Virgem Maria como aquela sobre a qual repousaram todas as graças de Deus, que foi adornada com todos os dons do Espírito Santo e que, por isso, é a maior de todas as criaturas.

Em terceiro e último lugar, o verbo grego “kecharitomene” está no tempo verbal perfeito, que não tem equivalente em português. O perfeito do grego indica uma ação completa no passado com efeitos presentes. Ao descrever Maria Santíssima como “cheia de graça” com o uso do perfeito, Gabriel Arcanjo indica que Nossa Senhora foi agraciada por Deus em um momento anterior à sua conversa com ela, e que, como resultado dessa ação de Deus, a Virgem continuava agraciada.

Que momento anterior foi esse em que a Virgem Maria foi agraciada por Deus? Tanto o profeta Jeremias (Jr 1, 5) quanto São João Batista (Lc 1, 15) o foram no ventre materno. Se Nossa Senhora é a “cheia de graça” por excelência, deve ter sido agraciada em um momento anterior a eles e de uma maneira superior.

Desde o início da Igreja, havia uma convicção de que Maria Santíssima foi agraciada a ponto de ser completamente livre de toda a mancha do pecado. Santo Agostinho, no século V, por exemplo, escreve a respeito de Maria Santíssima:

“Excetuo a santa Virgem Maria, sobre a qual, devido à honra ao Senhor, não quero discutir, eis porque sabemos que lhe foi concedido um grau mais elevado de graça para vencer totalmente o pecado, pois mereceu conceber e dar à luz aquele a respeito do qual não consta que tivesse pecado” (SANTO AGOSTINHO. A natureza e a graça. In: A graça (I). São Paulo: Paulus, s.d., 36).

Essa compreensão foi amadurecendo até o século XIII, quando o Beato João Duns Scotus defendeu, em seus comentários ao Terceiro Livro das Sentenças, de Pedro Lombardo, que a graça com a qual Nossa Senhora foi alcançada envolveu ter sido ela preservada do pecado original, e que isso aconteceu no momento da sua concepção:

“Como filha e descendente de Adão, Maria deveria contrair o pecado de origem, mas perfeitamente redimida por Cristo, não incorreu nele. Quem atua mais perfeitamente? O médico que cura a ferida do filho caído ou o que, sabendo que seu filho irá passar por determinado local, se adianta e tira a pedra que provocará o tropeço? Sem dúvida alguma, o segundo. Cristo não seria perfeitíssimo redentor se, pelo menos em um caso, não redimisse da maneira mais perfeita possível. Pois bem; é possível prevenir a queda de alguém no pecado original. E se devia fazê-lo em algum caso, o fez no caso de sua Mãe”.

O entendimento da Imaculada Conceição de Maria, que se tornou cada vez mais universal, foi declarado como dogma pelo Papa Beato Pio IX, na Constituição Apostólica “Ineffabilis Deus”, em 1854: “A santíssima Virgem Maria foi preservada imune de toda mancha de culpa original no primeiro instante de sua Concepção, por singular graça e privilégio de Deus onipotente, na atenção aos méritos de Jesus Cristo, salvador do gênero humano”. Desse modo, Deus é o Salvador da Virgem Maria (Lc 1, 47) da maneira mais perfeita possível, nem mesmo permitindo que ela contraísse a mancha do pecado original.

Tudo isso que aprendemos sobre Maria Santíssima como “cheia de graça” se relaciona com o que vimos no artigo anterior. Maria precisava ser a “cheia de graça” para cumprir sua missão como Mãe de Deus. Como Nossa Senhora seria um templo (Lc 1, 35), onde habitaria aquele que é “cheio de graça” (“pleres charitos”) e verdade (Jo 1, 14), era apropriado que ela fosse a “cheia de graça” (“kecharitomene”). Assim como no templo do Antigo Testamento não poderia haver impureza ou defeito (Lv 21; 22), também era necessário que a Mãe de Deus fosse completamente livre de toda imperfeição.

Além de templo, a Virgem Maria também é a nova Eva, que desfaz com sua obediência a desobediência da primeira Eva. Para que isso fosse possível, era necessário que ela tivesse a mesma pureza e integridade da primeira Eva antes da queda:

“Maria e Eva, duas pessoas sem culpa, duas pessoas simples, eram idênticas. Depois, no entanto, uma se tornou a causa da nossa morte, a outra, a causa da nossa vida” (SANTO EFRÉM, Op. syr., 2, 327).

Concluímos, desse modo, que poucos títulos de Nossa Senhora são tão elogiosos quanto o “cheia de graça”. Ao saudá-la assim na oração da Ave Maria, reconhecemo-la como a serva do Senhor, de condição mais humilde que, no entanto, foi de tal modo agraciada e salva por Deus, que se tornou a mais perfeita de todas as criaturas, acima de anjos e homens. Deus, de fato, “Depôs os poderosos de seus tronos e exaltou os de condição humilde” (Lc 1, 52). Por que, então, não rezar uma Ave Maria agora à Mãe de Deus e nossa Mãe, louvando as grandes coisas que o Poderoso fez por ela (Lc 1, 49)?

Leia também os outros artigos da série “Um breve comentário à oração da Ave Maria”:

“Ave Maria… o Senhor é convosco”
Saudação de Santa Isabel (Parte 1)
Saudação de Santa Isabel (Parte 2)
Súplica à Santa Maria, Mãe de Deus

03/08/2022

Podemos fazer imagens de Deus?

Artigo de André Aloísio publicado no blog do Pocket Terço, dia 03/08/2022.

Em Êxodo 20, 3-5, no primeiro mandamento, Deus proíbe o povo de Israel de ter outros deuses e de fazer imagens para adorá-las:

“Não terás outros deuses diante de mim. Não farás para ti qualquer ídolo ou figura do que existe em cima nos céus, ou embaixo na terra, ou nas águas debaixo da terra. Não te prostrarás diante deles, nem os servirás, pois eu sou o SENHOR, teu Deus, um Deus zeloso…”.

É um fato bastante conhecido que, nesse mandamento, Deus não proíbe a confecção de qualquer tipo de imagem, mas apenas de ídolos, para fins de adoração, já que o próprio Deus mandou que o povo de Israel fizesse imagens: querubins de ouro em cima da arca da Aliança (Ex 25, 16-22; 1Rs 6, 23-27), animais e querubins no templo de Salomão (1 Rs 7, 28-30) e a serpente de bronze no deserto (Nm 21, 8-9). Portanto, não se pode usar o primeiro mandamento para proibir a confecção de imagens de Nossa Senhora, anjos e santos.

Entretanto, muitas pessoas ficam na dúvida se Deus pode ser representado por meio de imagens, por causa da passagem de Deuteronômio 4, 12.15-18, onde Moisés descreve a fala de Deus no monte Horeb (Sinai), ao entregar os Dez Mandamentos, e traz um mandamento a partir disso:

“Então, o SENHOR vos falou do meio do fogo. Ouvíeis a voz das palavras, mas não enxergáveis figura alguma, só havia uma voz! […] Tende muito cuidado! Não vistes figura alguma no dia em que o SENHOR vos falou no Horeb, do meio do fogo. Não vos entregueis à corrupção, fazendo qualquer estátua de alguma figura, qualquer ídolo com forma masculina ou feminina, forma de animal vivendo sobre a terra ou forma de ave voando no céu, forma de bicho rastejando pelo chão ou forma de qualquer peixe vivendo na água, debaixo da terra”.

Nessa passagem, Deus, de fato, proíbe Israel de representá-lo por meio de imagens. Como explicar, então, que a Igreja Católica, desde o início, como na Catacumba de Domitila, no século II, tem feito imagens do Senhor Jesus Cristo, que é Deus? A resposta a essa pergunta foi dada há muito tempo, pelo último dos Padres da Igreja: São João Damasceno.

No século VII, o Islamismo, que proibia representações de Deus, avançou para regiões anteriormente ocupadas por cristãos, inclusive no Oriente Médio, Oriente Próximo e em parte da Ásia Menor. Sob essa influência islâmica, no século VIII, alguns cristãos, conhecidos como iconoclastas (“quebradores de imagens”), começaram a se opor ao uso de imagens, inclusive de Nosso Senhor, usando passagens como a de Deuteronômio acima. É nesse contexto que São João Damasceno, monge e sacerdote sírio, reconhecido como Doutor da Igreja, escreve em favor das imagens do Cristo, lançando as bases para a decisão favorável às imagens do Sétimo Concílio Ecumênico, o Segundo de Nicéia, em 787. Comentando a passagem de Deuteronômio 4, 15-17, ele reconhece que o Deus invisível não pode ser retratado:

“Entenda que Ele proíbe a fabricação de imagens para servirem como ídolos, e que é impossível fazer uma imagem do imensurável, incircunscrito, Deus invisível. […] Que sabedoria a do legislador. Como descrever o invisível? Como retratar o inconcebível? Como dar expressão ao ilimitado, o imensurável, o invisível? Como dar forma a imensidão? Como pintar a imortalidade? Como localizar o mistério?” (Apologia contra os que condenam as imagens sagradas).

Todavia, ele continua explicando que a Encarnação do Filho de Deus inaugurou uma nova “economia” das imagens (cf. Catecismo da Igreja Católica, 1159):

“É claro que quando você contempla a Deus, que é puro espírito, tornando-se homem por nossa causa, você será capaz de vesti-lo com a forma humana. Quando o Invisível se torna visível para a carne, então é possível retratar a imagem de sua forma. Quando Ele, que é puro espírito, sem forma ou limite, imensurável na imensidão de sua própria natureza, existindo como Deus, toma sobre Si a forma de servo em substância e em estatura, e um corpo de carne, então você pode desenhar Seu semblante, e mostrá-lo para qualquer pessoa disposta a contemplá-lo […] Desde a antiguidade, Deus o incorpóreo e incircunscrito nunca foi retratado. Agora, no entanto, quando Deus é visto revestido de carne, e conversando com os homens (Br 3, 38), eu faço uma imagem do Deus a quem eu vejo” (Apologia contra os que condenam as imagens sagradas).

Observe que a proibição de Deuteronômio tem um motivo: Israel não pode fazer imagens de Deus, porque não viu Deus no Sinai, mas apenas ouviu sua voz, sua Palavra. Porém, no Novo Testamento, “a Palavra se fez carne e veio morar entre nós”, e nós não apenas a ouvimos, mas também “contemplamos a sua glória, glória como do Unigênito do Pai, cheio de graça e de verdade. […] A Deus, ninguém jamais viu. O Deus Unigênito, que está no seio do Pai, foi quem o revelou” (Jo 1, 14.18); ou, como é dito em 1Jo 1, 1-3:

“O que era desde o princípio, o que ouvimos, o que vimos com os nossos olhos, o que contemplamos e nossas mãos apalparam da Palavra da Vida – vida esta que se manifestou, que nós vimos e testemunhamos, vida eterna que a vós anunciamos, que estava junto do Pai e que a nós se manifestou –, isso que vimos e ouvimos, nós vos anunciamos…”.

Desse modo, se o motivo para se proibir imagens de Deus no Antigo Testamento era que Deus não tinha sido visto, e no Novo Testamento Deus foi visto, segue-se que a proibição não mais permanece. Por essa razão, São João Damasceno afirma, e a Igreja Católica com ele no Segundo Concílio de Niceia, que, a partir da encarnação, Deus pode ser representado por meio de imagens. Isso se aplica principalmente ao Filho, mas também ao Pai (“Quem me viu, viu o Pai” – Jo 14, 9) e ao Espírito Santo (“Eu vi o Espírito, como pomba, descer do céu e permanecer sobre ele” – Jo 1, 32). Continua sendo verdadeiro que não conseguimos representar o Deus incircunscrito, invisível. Mas uma imagem de Deus se propõe a representar apenas aquilo que Deus revelou e que se tornou visível.

Então, podemos fazer imagens de Deus? Não só podemos, como devemos:

“devem ser colocadas nas santas igrejas de Deus, sobre as alfaias e vestes sagradas, nos muros e em quadros, nas casas e nos caminhos […] tanto a imagem de nosso Senhor, Deus e Salvador, Jesus Cristo, como a de nossa Senhora, a puríssima e santa Mãe de Deus, a dos santos anjos e de todos os santos e justos” (Segundo Concílio de Niceia).

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